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Os Luteranos e os Pais da Igreja Primitiva

Foto do escritor: Rev. Filipe Schuambach LopesRev. Filipe Schuambach Lopes

Um pensamento equivocado é afirmar que a Igreja Luterana teve seu início apenas em 1500. Um historiador poderia abordar a questão dessa maneira, pelo menos de uma perspectiva estritamente cronológica, mas não era assim que os reformadores luteranos interpretavam sua própria história. A Reforma Luterana não eliminou seus antecessores da narrativa histórica; ao contrário, os reformadores viam-se como restauradores da doutrina pura que a Igreja havia ensinado desde os tempos de Cristo até o seu próprio período. Inicialmente, basearam-se nas Escrituras Sagradas, derivando seus ensinamentos de Jesus Cristo e Seus apóstolos. Em segundo lugar, os luteranos identificaram essa doutrina verdadeira e salvadora nos escritos dos Pais da Igreja Primitiva, homens que estudaram as Escrituras e transmitiram a fé por meio das formulações clássicas da teologia cristã. A Igreja Luterana não teve seu início em 1500; ela representa a continuação da Igreja Católica (universal), abrangendo todos aqueles que ensinaram e acreditaram na única fé católica.

No Livro da Concórdia, os Pais da Igreja Primitiva são referenciados e citados em todos os documentos confessionais (exceto no Catecismo Menor). A seguir estão todos os mencionados: Justino Mártir, Irineu e Tertuliano do século II, Orígenes, Cipriano, Antônio do Egito, Atanásio, Basílio de Cesaréia, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa, João Crisóstomo, Cirilo de Alexandria, Hilário de Poitiers, Jerônimo, Ambrósio, Agostinho e Leão I, que cobrem o terceiro, quarto e quinto séculos, Gregório I, Beda e João de Damasco dos séculos VI, VII e VIII.

Esses homens ministraram e deixaram registros em todo o Império Romano: da Judéia à Inglaterra; do norte da África à Itália e Ásia Menor. Eles são os principais mestres de toda a Igreja ao longo dos primeiros oito séculos da história cristã, e os luteranos os reconhecem como seus predecessores na fé.

Uma das razões centrais pelas quais os luteranos se voltam aos Pais da Igreja Primitiva é em busca de orientação e auxílio. Ao citarem um Pai da Igreja Primitiva, os luteranos não apenas se conectavam ao passado, mas estavam envolvidos em uma defesa da doutrina pura. Assim, ao extraírem seus ensinamentos das Escrituras, recorreram aos seus predecessores em busca de auxílio nas disputas com a Igreja Romana e os protestantes radicais.

Os luteranos citaram os Pais da Igreja Primitiva contra os novos (falsos) mestres da Igreja Romana, evidenciando que estão alinhados com os credos e mestres históricos. Sua intenção não era alterar algo, mas purgar as falsas ideias que se infiltraram na Igreja. Por exemplo, no artigo principal sobre a justificação, Ambrósio afirmou:

“por isso ninguém se glorie de obras, já que ninguém é justificado pelo que faz. Porém quem é justo o é por dádiva, já que foi justificado depois do banho [batismal]. Logo, é a fé que liberta pelo sangue de Cristo, porque bem-aventurado é aquele cujo pecado é perdoado e a quem é concedido o perdão” (Apologia da Confissão de Augsburgo, art. IV:103).

Os luteranos também abordaram o abuso de reter o sangue de Cristo dos leigos na Ceia do Senhor, encontrando apoio não apenas na instituição de Cristo, mas também nas palavras de Justino Mártir, Cipriano e Jerônimo. Outro ponto crucial era a autoridade do papa e do Ministério. Em oposição às alegações de superioridade papal, muitos dos antigos pais apoiaram os luteranos, incluindo Jerônimo, que afirmou que os bispos são iguais em ofício (Artigos de Esmalcalde, Parte II, art. IV:9). João Crisóstomo, ao comentar Mateus 16, declarou:

“‘Sobre esta pedra’, diz Cristo, e não ‘sobre Pedro”. Pois ele edificou a sua igreja não sobre o homem, mas sobre a fé que Pedro tinha. E que fé era essa? ‘Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo’” (Tratado sobre o poder e o primado do papa, 28).

Além disso,

“a maioria dos santos Pais, como Orígenes, Ambrósio, Cipriano, Hilário, Beda, interpretam a sentença ‘sobre esta pedra’ desse modo, não como referência à pessoa ou à superioridade de Pedro” (Tratado 27).

Os luteranos também encontraram apoio dos Pais em questões como confissão, boas obras, pecado original, livre arbítrio, monaquismo e honra aos santos.

Por outro lado, os luteranos também citaram os antigos Pais em oposição à ala mais radical da Reforma Protestante (anabatistas, zwinglianos, calvinistas, etc.). Seu objetivo era destacar que esses reformadores radicais estavam indo longe demais ao rejeitar o que precedeu, afastando-se da única e verdadeira fé católica. Isso foi particularmente evidente em relação à Ceia do Senhor e à Pessoa de Cristo. Enquanto muitos dos reformadores radicais reduziam a Ceia do Senhor a uma refeição memorial, os luteranos concordavam com os Pais, como João Crisóstomo:

“o próprio Cristo prepara e abençoa esta mesa, Pois nenhum ser humano faz do pão e o vinho postos diante de nós o corpo e sangue de Cristo. Quem isso é o próprio Cristo, que foi crucificado por nós. As palavras são proferidas pela boca do sacerdote, mas os elementos postos diante de nós na ceia são consagrados pelo poder e graça de Deus, pela palavra que ele diz: ‘Isto é o meu corpo’” (Fórmula de Concórdia, Declaração Sólida VII:76).

Tanto na Apologia quanto na Fórmula de Concórdia, é dito com Cirilo, confirmando com passagem de Paulo em 1Coríntios 10.16

“que, na ceia do Senhor, o corpo e o sangue de Cristo estão presentes verdadeiramente e essencialmente, sendo oferecidos verdadeiramente com os elementos visíveis, pão e vinho, aos que recebem o sacramento. [...] E Cirilo é citado para mostrar que Cristo na ceia habita em nós também corporalmente por meio do compartilhamento de sua carne” (Fórmula, Declaração Sólida VII:11; cf. Apologia X:56).

É evidente que os pais da Igreja Primitiva não eram infalíveis. Os luteranos não os citam como autoridades finais, nem subscrevem todos os escritos produzidos por esses antigos mestres. Não hesitaram em apontar onde os pais cometeram erros. Por exemplo, as declarações sobre o livre arbítrio de Crisóstomo e Basílio foram rejeitadas porque

não concordam com a forma da sã doutrina” (Fórmula, Declaração Sólida II:86).

No Catecismo Maior, Lutero repreendeu a ideia de Jerônimo de que o arrependimento é a prancha que você usa para nadar quando o navio do seu Batismo é naufragado pelo pecado. “Porque o barco não se quebra”, diz Lutero, “é ordenamento de Deus, não coisa nossa” (Catecismo Maior, Parte 4:82). Às vezes, os pais precisam ser corrigidos. No entanto, os luteranos sempre os abordam como pais respeitados e buscam dar a melhor interpretação às suas palavras e ações. Um bom exemplo é como defendem Antônio e os primeiros líderes monásticos (Apologia da Confissão de Augsburgo, art. IV, p.187:1). Procuram preservar as boas intenções dos pais e evitam que os erros sejam usados como argumentos para falsas doutrinas.

Citar os Pais da Igreja Primitiva não significa que o ensino cristão seja estabelecido na autoridade dos homens. Os luteranos afirmam que as Escrituras são

“a única norma verídica de acordo com a qual devem ser julgados todos os mestres e doutrinas” (Fórmula, Declaração Sólida, da suma, 3).

No entanto, os mestres e doutrinas considerados verdadeiros também merecem apreço e uso. A fé cristã não teve início conosco; é transmitida de uma geração de santos para outra, à medida que cada geração se apegou às Escrituras. Podemos extrair valiosos ensinamentos dos Pais e Mestres da Igreja antiga, visto que todos pertencemos à mesma Igreja Católica. Eles não devem ser estranhos para nós. Se nos consideramos verdadeiros luteranos, então eles são verdadeiramente nossos pais.


— Artigo traduzido e adaptado de Lutherans and the Early Church Fathers, escrito pelo Rev. Anthony Dodgers e publicado pela LCMS Resources. Salvo exceção, todas as citações do Livro de Concórdia são da nova edição de 2021, publicado pela Editora Concórdia (IELB) e Editora Sinodal (IECLB).

 

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