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Por que estudar Lutero?

Foto do escritor: Rev. Filipe Schuambach LopesRev. Filipe Schuambach Lopes

O mais importante motivo para estudar e ensinar Martinho Lutero talvez seja o de compreender o que significa ser cristão na tradição de Lutero. Especialmente nos dias de encontros e conversações ecumênicas entre igrejas, é importante que nós luteranos saibamos o que significa nossa afirmação de identificação: “Eu sou um luterano”.

 

Histórias mal contadas

Precisamos estudar a história de Martinho Lutero porque há uma série de coisas sendo ditas sobre ele e seu movimento que não são verdadeiras. Você não ouviu muitas vezes a afirmação de que havia somente uma igreja antes que Lutero surgisse e a dividisse? Isto simplesmente não é verdade. Administrativamente, o cristianismo não conhecia uma unidade por muitos séculos. Desde os séculos primitivos houve uma divisão entre a parte da igreja que falava a língua latina, centralizada em Roma, e a parte que falava a língua grega, centralizada em Constantinopla. Reivindicações quanto a territórios missionários e diferenças litúrgicas - entre outros problemas - proporcionaram uma ruptura entre a Igreja Romana e a Igreja Ortodoxa Oriental, em 1054 A.D.

 

Além disso, existiam grupos de cristãos não-romanos em diversas partes da Europa durante séculos antes do tempo de Lutero. Os mais famosos eram os albigenses e valdenses no Sul da França. Assim, Lutero não dividiu a igreja visível; ela já se achava dividida bem antes de sua época.

 

Mas nem todas as afirmações equivocadas sobre o caráter da igreja na Idade Média são feitas pelos inimigos do Reformador. Um belo exemplo disso é a imagem muitas vezes mencionada por Lutero sobre o achado de uma Bíblia acorrentada à parede da biblioteca da Universidade de Erfurt. Muitos querem “provar” com isso que o povo na Idade Média não tinha a permissão de ler a Bíblia. Exatamente o contrário é a verdade. A Bíblia estava acorrentada à parede daquela universidade porque era um livro valiosíssimo. Ela havia sido escrita manualmente. Somente as pessoas mais abastadas podiam dar-se ao luxo de adquirir tal livro. Em consequência, as cópias da Bíblia não eram frequentes no acervo das bibliotecas.

 

Outra inverdade é que Lutero tenha sido a primeira pessoa a traduzir a Bíblia para a língua alemã. Havia, em verdade, razoável quantia de edições da Bíblia na língua alemã antes da Reforma. É verdade, sim, que essas Bíblias não tinham autorização da igreja. Muitos príncipes alemães não tinham disposição em permitir que essas Bíblias fossem comercializadas em suas áreas. Mas havia Bíblias populares, Bíblias para crianças, paráfrases da Bíblia, Bíblias simplificadas e livros de histórias bíblicas. Tudo isso já estava disponível antes da Reforma.

 

Nenhuma dessas Bíblias naturalmente alcançou a popularidade da Bíblia de Martinho Lutero. Lutero tinha um estilo na linguagem alemã que os demais tradutores não possuíam. Por isso, a sua tradução tornou-se popular e era lida em grande escala, enquanto as demais traduções alemãs eram ignoradas. Mas sugerir que a força da Reforma estava depositada sobretudo em cima da “Bíblia aberta” significa ver mal a Reforma.

 

Necessidade de revisão

Outro equívoco usual é dizer que a igreja dos dias de Lutero nada falava sobre “graça”. Seguidamente somos ensinados que, antes da éроса de Lutero, o único tipo de religião era o da “justificação pelas obras”. Este também não é o caso correto. Realmente, o ritual da igreja medieval e suas formas dominantes de piedade encaminharam muitas pessoas a crer que elas poderiam herdar o caminho do céu através da prática desses rituais. Mas os professores de religião da igreja medieval ensinavam que Deus salvou os seres humanos por graça, através do sofrimento e morte de Jesus Cristo.


Contudo, os professores contemporâneos de Lutero discordavam em outros aspectos da graça. Por exemplo, Tomás de Aquino ensinou que é sempre Deus quem toma a iniciativa de salvar uma pessoa. O homem é salvo pela graça. Porém, Aquino não ensinou que o homem é salvo somente pela graça. Ele acreditava que, após o ato inicial de Deus, a sua escolha de uma pessoa em Cristo, o homem precisava cooperar com Deus a fim de alcançar a salvação. William Occam, de outra parte, tentou explicar a razão por que Deus escolhia determinadas pessoas para a salvação e não outras. Ele considerou que era algo dentro do caráter do homem que leva Deus a escolhê-lo por graça. Occam não ensinou também o “somente pela graça”. Lutero reiterou o ensino bíblico de que a salvação era obra de Deus (pela graça) do começo ao fim, e não apenas em parte.

 

Estas são apenas três interpretações equivocadas da Reforma. Há muitas outras. Lutero muitas vezes recebeu o crédito de ser o fundador da educação popular paroquial. Isto não é verdadeiro. Apenas podemos dizer que Lutero tinha o maior interesse pela educação das crianças, particularmente em sua educação religiosa, e ele incentivou os governantes locais a criar escolas para o treinamento das crianças pela causa do Estado bem como da Igreja.


A Reforma Luterana muitas vezes é caracterizada como quem deu “paz de consciência” ao povo na Europa. Talvez seja verdadeiro o que Lutero disse em Worms: “Se eu não posso ser convencido na base da Escritura e justa razão (consciência), eu não vou me retratar”. Mas não foi para libertar a consciência dos homens de algum tipo de tirania que Lutero fez o que fez.


Mais recentemente se ensinou que Lutero foi um criador do nacionalismo alemão. A verdade é que o nacionalismo na Alemanha já estava crescendo no tempo de Lutero. Os alemães sentiam o domínio italiano em suas terras. Como alemão, Lutero sem dúvida compartilhou destes sentimentos. Mas sugerir que Lutero fez o que fez para fins de um nacionalismo adicional alemão é equivocar-se inteiramente sobre o que o preocupava a respeito disso.

 

A dúvida faz o monge

Nós precisamos estudar Lutero, então, a fim de clarificar ou corrigir muitos equívocos sobre a Reforma. Este é o lado negativo. O estudo de Lutero também é a única maneira para descobrir o que significa ser luterano. No afã de entender isso, é necessário revisar o que claramente levou Lutero a fazer o que fez. Lutero não procurava apenas a liberdade ou paz de consciência ou paz política ou maior educação geral. Lutero era um homem que buscava a Deus.


Após sua graduação na universidade, Lutero surpreendeu seus amigos e pais com seu ingresso num mosteiro. Quando posteriormente foi perguntado por que se tornara um monge, a sua resposta foi: “A dúvida faz o monge”. Lutero foi conduzido ao mosteiro porque tudo quanto havia aprendido sobre religião era insatisfatório. A sua vida nunca fora perfeita o suficiente para colocá-lo em paz com Deus.


Lutero, no mosteiro, esforçou-se em realizar o melhor possível para ser um monge perfeito. Fez tudo o que lhe foi exigido. Mas a vida sistematizada do mosteiro, destinada a conduzir uma pessoa à perfeição espiritual, não foi capaz de suavizar a culpa assombrosa que sempre parecia perseguir Lutero. Quando ia à confissão, ele não se sentia realmente arrependido pelo que fizera. Sempre que fazia algo bom, ele sentia certo orgulho. Não importava o que fazia, o pensamento não parava de voltar até ele para dizer-lhe que, apesar de tudo, ele ainda era tão pecador como em todo o seu passado


Lutero havia aprendido que, se alguém fosse filho de Deus, sentiria a realização de uma purificação da alma. Visto não sentir qualquer realização desse tipo ocorrer em seu interior, ele passou a ficar preocupado se era ou não um dos eleitos de Deus. Nestes momentos de extrema dúvida da graça de Deus sobre ele, Lutero abominou a Deus. Assim, quando alguém o perguntava se amava a Deus, ele respondia com petulância: “Amar a Deus? Eu o odeio”. Esse foi o terrível estado de espírito de Lutero quando decidiu tornar-se sacerdote.


Após completar os seus estudos ao sacerdócio, Lutero passou a estudar teologia. Mas Lutero encontrou pouca coisa nos ensinos da igreja medieval que viesse a satisfazer a fome de sua alma. Ao receber seu doutorado (divinity degree), tornou-se professor da Bíblia na nova Universidade de Wittenberg, na Alemanha. Foi como professor que chegou a adquirir o entendimento do evangelho cristão.

 

A Garantia de Deus

Conferenciando, em 1513, sobre os salmos, Lutero foi solicitado a explicar aos estudantes o que significava o Salmo 31.1: “Livra-me por tua justiça”. Ele sempre entendera que a justiça de Deus significava que Deus estava julgando. Mas se isso fosse verdade, como a justiça de Deus poderia livrar alguém? Ao meditar sobre isso e estudar outras passagens na Escritura, chegou à conclusão de que a justiça de Deus não é a sua ira sobre o homem, mas, antes, sua misericordiosa vontade pela qual ele reintegra a pessoa na sua graça.


Unicamente pela compreensão da palavra de Deus nesta forma é que a frase “livra-me por tua justiça” fez algum sentido para Lutero. Quando ele comentou o Salmo 22: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” essa justiça de Deus tornou-se mais clara para Lutero. Como poderia Deus desamparar a seu Filho? Ele não tinha pecado! Então rompeu nele o dia. Por que o Pai desamparou a Cristo? Porque Cristo morrera por ele. Isto abriu a porta à compreensão da Bíblia por Lutero.


Através de permanente estudo da Bíblia, Lutero chegou a uma compreensão mais profunda da livre graça de Deus em Jesus Cristo. Compreendeu que todos somos salvos pela graça, mas somente pela graça. Em Cristo era possível Deus ser gracioso para com Lutero, mesmo que ele continuasse a pecar. Perguntado de como sabia disso, como estava tão seguro de Deus estar e ser tão gracioso com ele, Lutero simplesmente apontava para a cruz de Jesus Cristo. Para ele, esta era a garantia de Deus.

 

 

O que é um luterano?

O que significa ser um luterano? Estar certo de que Deus é gracioso para conosco! O ensinamento de Lutero era basicamente: “Temos paz com Deus através de Jesus Cristo, nosso Senhor”. É importantíssimo compreendermos este significado da Reforma Luterana e do termo “lute- rano”. Vivemos em meio a mudanças. Isto também vale para a vida da igreja. A arquitetura da igreja está mudando. O modelo de adoração está mudando. Estamos lendo uma nova versão da Bíblia. As agências educacionais estão usando novos e modernos materiais religiosos. É importante estarmos certos e confiantes sobre o que não pode mudar. Entre todas essas mudanças, o que nos faz “luteranos”?

 

O que faz um luterano ser luterano é que ele confia inteiramente na graça de Deus em Cristo para a sua salvação. Um luterano não tenta dar explicações do motivo por que Deus derramou sobre ele sua graça. Um luterano não sente que precisa provar por “boas” obras que Deus o ama. A pessoa que segue a Lutero sabe, por que conhece a Cristo, que Deus o ama e lhe dá sua graça. Não importa que mudanças possam ocorrer na vida da igreja, não mudando este ponto fundamental, nós somos filhos da Reforma Luterana.

 

Por que estudar Lutero? Para crescermos na fé. Crescemos na fé quando ouvimos o Evangelho a nós anunciado e quando recebemos os santos sacramentos. Também crescemos na fé com o contato com grandes cristãos, do passado e do presente, pois neles podemos ver o Evangelho em ação. Lutero foi um grande cristão. Através do estudo de sua luta espiritual e sua vida, nós somos ajudados a ver a glória da graça de Deus e o que significa experimentá-la. Esta é nossa herança luterana.



 

Escrito por Walter Oetting. Artigo publicado orignalmente em Interaction, outubro/1963 e publicando no Mensageiro Luterano de Outubro de 1991

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