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Na Quinta-feira Santa, os apóstolos receberam o Corpo e o Sangue de Jesus?

Foto do escritor: Rev. Filipe Schuambach LopesRev. Filipe Schuambach Lopes

A resposta simples e rápida é “sim”. E o colega pastor acrescentou um comentário que já é uma resposta: “Nós cremos que ali Jesus fez uso pleno de sua divindade para fazer acontecer a presença real na Ceia”.

Mas também é possível fazer uma reflexão mais demorada, com base nas assim chamadas “palavras da instituição”. Essas palavras, que já foram descritas como o texto bíblico mais estudado e discutido ao longo da história da Igreja, aparecem em quatro livros do Novo Testamento: três dos quatro evangelhos (Mateus 26, Marcos 14, Lucas 22) e 1Coríntios 11. Existem pequenas diferenças entre os quatro relatos, mas concordância quanto ao essencial. Temos como que duas tradições, com Mateus e Marcos de um lado e Lucas e Paulo (em 1Coríntios 11) do outro lado. Na Liturgia Luterana, faz-se uso de um texto que é uma combinação dos quatro relatos da instituição da Ceia.

Ao entregar o pão, naquela noite, Jesus disse: “Isto é o meu corpo”. São palavras que aparecem nos quatro relatos da instituição da Ceia. O termo “dado” aparece apenas no texto de Lucas 22.19. Jesus disse: “Isto é o meu corpo, dado por vocês”. Ao distribuir o cálice, Jesus disse, segundo Lucas e Paulo (em 1Co 11), que o cálice era “a nova aliança no meu sangue”. Segundo Mateus e Marcos, ele disse “Isto é o meu sangue”. Nos relatos dos três evangelhos aparece também o termo “derramado”. Portanto, está claro que Jesus falou do corpo dele como “dado” e do sangue dele como “derramado”. E isso na hora de instituir a Santa Ceia.
 
Você pode perceber que isso soa estranho, justificando a pergunta do colega pastor: Jesus entregou o seu corpo e o seu sangue também aos apóstolos na hora da instituição da Ceia? De fato, Jesus disse “dado” e “derramado”. E, naquele contexto dar e derramar tinha conotação de sacrifício, especialmente as palavras relacionadas com o sangue. Sangue derramado é sangue derramado em sacrifício. Sendo assim, a que sangue derramado Jesus se referia? Ao sangue do sacrifício na cruz. Só que esse sacrifício teria lugar apenas no dia seguinte, na sexta-feira santa. Como, então, Jesus podia falar sobre um corpo “dado” e um sangue “derramado”? Será que ele já estava se sacrificando ou sendo sacrificado no momento de instituir a Ceia?

A resposta terá de levar em consideração o que está escrito no original grego. Tanto “dado” quanto “derramado” são particípios, em grego. São formas do particípio presente, e disso costuma resultar a tradução por “é dado” e “é derramado”. Acontece, porém, que, em grego, os particípios não expressam noção de tempo, que é algo derivado mais do contexto do que da forma verbal. E, como o sacrifício de Jesus ainda estava por acontecer, seria de esperar que fossem usadas formas do futuro: será dado e será derramado. Tais formas são possíveis, em grego, mas são extremamente raras (apenas 13 ocorrências do particípio futuro em todo o Novo Testamento, contra mais de 3.500 do particípio presente). Isso leva gramáticos da língua grega do Novo Testamento a afirmarem que as formas do presente (é dado, é derramado) são usadas como se fossem do futuro, denotando, como diz um gramatico, “uma ação relativamente futura”. Portanto, por razões de ordem contextual (o sacrifício de Jesus seria no dia seguinte) e gramatical (a gramática grega permite esta interpretação), aquele “dado” e aquele “derramado”, ao serem pronunciados por Jesus, significavam “será dado” e “será derramado”.

Mas qual a importância dessa discussão de ordem gramatical para a resposta à pergunta sobre a Santa Ceia que os discípulos receberam na noite da quinta-feira santa? A importância reside nisto: Também eles receberam a Santa Ceia como nós a recebemos. Também eles tiveram um comer e um beber sacramental. Eles receberam os benefícios da morte sacrificial de Jesus em antecipação, pois o corpo de Jesus ainda seria dado e o sangue dele ainda seria derramado. Nós recebemos a Santa Ceia em memória, isto é, em termos do que se poderia chamar de “atualização”. Para nós, portanto, aquele “dado” e aquele “derramado” precisam ser entendidos no sentido de “que foi dado” e “que foi derramado”. Assim como Jesus não antecipou o seu sacrifício para a noite em que ele foi traído e precisamos entender o dar e derramar em termos de “será dado e derramado”, assim também não existe repetição do sacrifício de Jesus na celebração da Ceia (porque o sacrifício dele aconteceu “uma só vez”) e precisamos entender o dar e derramar em termos de “foi dado e derramado”.

Em termos práticos, isso significa que os apóstolos não tiveram nenhuma vantagem em relação a nós. Talvez estivessem até em desvantagem. Para muitos, hoje, parece impossível que, na Santa Ceia, o Cristo glorificado nos dê, de forma sacramental, o seu corpo que foi dado e o seu sangue que foi derramado na cruz. Mas os apóstolos devem ter ficado mais perplexos ainda, porque Jesus estava sentado diante deles. Como Jesus podia dar-lhes o corpo que seria dado no dia seguinte e o sangue que seria derramado na cruz? A pergunta deles deve ter sido semelhante à dos judeus na sinagoga de Cafarnaum (Jo 6.52). Talvez tenham se perguntado: “Como é que este pode nos dar o seu corpo para comer e o seu sangue para beber?” É a mesma pergunta que é feita ao longo dos séculos. E a melhor resposta é a de Lutero: É assim, porque Jesus disse que era assim.

 
Artigo escrito pelo Rev. Prof. Dr. Vilson Scholz
e publicado na Revista Mensageiro Luterano de Agosto de 2017, p.06-07
 

1 Comment


Matheus de Oliveira Carriço
Matheus de Oliveira Carriço
Apr 03, 2024

Excelente conteúdo, reverendo. Essa dúvida perigosa ainda persiste em nossos dias, é muito importante dedicarmos tempo ao estudo do santo sacramento do altar.

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